Nossa democracia está morrendo?
Nas últimas semanas, o pouco tempo que tive “livre” passei lendo “Como as democracias morrem” dos autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Embora a análise dos autores foque o governo norte-americano e como a sua história permitiu que um líder como Donald Trump chegasse à presidência, é impossível não desenhar um roteiro paralelo com a situação brasileira.
Depois da divulgação do vídeo da reunião ministerial, a argumentação ganha ainda mais força. A reunião por si só é apenas o retrato grotesco da nossa política e, embora estejamos indignados (ou deveríamos estar), ela não é o nosso fundo do poço.
Resumidamente, em “Como as democracias morrem” os autores apresentam alguns pilares que sustentam uma política democrática, além da possibilidade de voto e participação do povo nas decisões governamentais. São eles: o papel de guardiões dos líderes políticos, a tolerância mútua e a reserva institucional. Esses pilares falam sobre o respeito às regras não escritas, mas fundamentais para que regimes autoritários não ganhem força.
A gente se indigna pelo fato de, naquelas duas horas de reunião, o presidente e os ministros nem sequer falarem sobre a pandemia, as mortes, a assistência que a população precisa, mas outros pontos que aparecem lá já aconteciam antes, embora dessa vez tenhamos assistido a uma versão condensada deles:
- A postura exaltada do presidente: Bolsonaro sempre teve o tom exaltado — e aprendemos a enxergar isso como sinal de sua “espontaneidade”. Há 5 anos seríamos incapazes de imaginar um presidente se comportando como ele, xingando etc., mas 1 ano e 5 meses depois de Bolsonaro ter assumido o cargo não é algo que nos surpreende.
- O inimigo à espreita: o tempo TODO, em quase todas as entrevistas e todos os discursos, Bolsonaro e seus ministros se referem a esse grande inimigo ditatorial esquerdista pronto para assumir o poder — isso também não surpreende. E sejamos claros: os únicos propondo ações antidemocráticas são os membros do atual governo.
- A mídia manipuladora: é quase uma repetição do item anterior. Bolsonaro está sempre condenando a imprensa. Ele cria essa atmosfera na qual a mídia deve ser descreditada. Devemos confiar nele. E, para nos “salvar”, ele fará qualquer coisa. O que nos leva a meu último ponto aqui:
- O poder ilimitado: Bolsonaro, Ricardo Salles e cia. não têm pudor algum de usar as “canetadas” que podem.
Esses quatro pontos retratam uma postura à qual simplesmente nos acostumamos a ver em nossos representantes. Segundo “Como as democracias morrem”, essa normalização é a grande brecha para a nossa democracia se tornar mais frágil. E o pior: políticos que usam desses artifícios a deixam cada vez mais vulnerável com a desculpa de estarem usando todas as armas para justamente defender a nossa Constituição.
Os quatro pontos reforçam exatamente como os pilares da democracia que o livro apresenta não estão funcionando tão bem do lado de cá:
- Os guardiões não conseguem controlar as atitudes do presidente e seus subordinados (a oposição, a Procuradoria, as câmaras… todos muito lentos para vermos alguma mudança real). E é por isso que passamos as últimas semanas lendo tanto sobre os escândalos e as mudanças nos Ministérios em vez de entendermos como cuidaremos da população.
- A tolerância mútua está cada dia menos consistente. A polarização, mesmo depois do fim das eleições, parece continuar aumentando. E é apavorante imaginar a que ponto ela pode chegar.
- A reserva institucional está indo para o saco. A dança das cadeiras, os decretos e tudo mais estão disputando quão longe cada um consegue ir. Pois embora em nenhum lugar esteja escrito qual o limite para ações desse tipo, claramente vemos que elas estão sendo praticadas de modo abusivo e prejudicial para termos alguma atitude que realmente nos ajude a enfrentar a atual crise.
Essa agressividade vista na liderança de alguma maneira nos cega ou nos limita a pensar em quão desemparados estamos. Especialmente porque vivemos sobre uma divisão: aqueles que estão em casa, protegidos, em home-office e os demais que não têm alternativa a não ser se colocar em risco, embora heroico, o segundo grupo não está recebendo cuidado emocional algum para lidar tantas perdas, exaustão, vulnerabilidade. A desigualdade está aí escancarada de um jeito que é impossível não vê-la, a não ser que tenhamos chegado a um nível tão alto de falta de sensibilidade que não sei se haverá solução.
Ok, mas o que fazer então?
No livro, os autores falam sobre o resgate da tolerância e a importância de sairmos do A ou B para buscar o terreno comum. As ideias comuns. Um bom começo para isso seria estabelecermos uma posição definitiva com o que não é aceitável, valorizando o papel da disseminação de informação verídica e priorizando o que nunca deveria ter saído de foco: a dignidade humana e a sustentabilidade da vida, incluindo aqui a defesa dos recursos naturais.
Nós precisamos vencer essa imposição da exploração da terra e das pessoas a qualquer custo em favor da Economia. Nós já produzimos demais, precisamos é de uma distribuição mais justa. Nosso presidente precisa deixar as instituições realizarem seu trabalho e parar de obstruí-las. Os líderes de cada pasta e órgão precisam entender o seu papel e agirem como adultos lúcidos responsáveis.
Se este governo se propõe a deixar uma marca da verdade, aqui está uma boa para começar: você está matando a população. Pare de usar a confiança do povo como um jogo de poder e comece a fazer algo para impedir que tenhamos de abrir ainda mais túmulos.