Política, conteúdo sob demanda e ativismo em Frankfurt — dia 02

Carolina Rocha
8 min readOct 19, 2019

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Se o primeiro dia teve ar de coisas em construção, o segundo trouxe muito mais um senso de mão na massa.

Nessa busca sobre pensar a comunicação que precisamos desenvolver daqui para frente, a programação diversa que pude fazer trouxe algumas reflexões e propostas práticas que podem nos servir como uma proposta de virada de discurso.

Comecei o dia num painel sobre a crise climática a partir de várias perspectivas literárias com a presença do autor cazaquistanês Rollan Seisenbayev e da diretora editorial da Amazon Crossing, Gabriella Page-Fort. Seguido por uma conversa sobre o programa Creative Cities da Unesco, cujo objetivo é promover colaboração entre cidades que colocam a criatividade e a produção cultural no centro de seus planos de desenvolvimento.

Depois do almoço, Literatura e Política na Ásia Pacífico com autores de Hong Kong, Indonésia, Malásia e Vietnã; conversa com Kelly Luegenbiehl, VP da Netflix Originals, sobre a relação da plataforma com o mercado editorial; depois segui para o bate-papo com o autor norueguês Karl Ove Knausgård e Juergen Boos, CEO da Feira do Livro de Frankfurt, que lhe perguntou sobre sua série Minha luta e sua visão sobre a literatura nos dias de hoje; de lá fui para a recepção dos jovens talentos do mundo junto com Juergen Boos; e, para encerrar o dia, jantar com brasileiros que estão vivendo na Alemanha e têm um ativismo belíssimo por mais representatividade na produção cultural, um mundo sem medo e sem silenciamentos políticos.

Como podem perceber, o dia foi intenso — e incrível. Por isso, neste texto, resolvi abrir um pouco mais alguns desses painéis (não necessariamente na ordem em que os assisti) e, ao fim, apresento como todos esses encontros se dialogam para mim.

Espero que apreciem! :)

A literatura nos ajuda a compreender o mundo

O painel sobre crise climática e literatura falou muito sobre como as obras podem levar consciência e proximidade para temas que muitas vezes parecem estar distantes de nossas realidades.

Diante da urgência em atendermos ao chamado pelo aquecimento global e o risco de vermos cada vez mais espécies desaparecendo, a literatura se transforma numa importante ferramenta para mostrar como podemos agir agora a fim de prevenir o irremediável — e isso pode ser feito para todos os públicos. Gabriella, diretora editorial da Amazon Crossing, disse algo muito legal nesse sentido, mais ou menos assim: “o papel da literatura é nos levar para o impossível, envolvendo-nos em empatia, ajudando-nos a nos aproximarmos de temas até então excluídos de nossos dias”.

E aqui vale ressaltar o que é a Amazon Crossing, projeto que não conhecia até então: é um selo da Amazon que traduz para o inglês obras de autores dos mais diversos lugares de mundo a fim de que seus livros possam se tornar mais acessíveis a diferentes leituras. Foi por meio desse selo que o autor Rollan Seisenbayev teve seu livro publicado. Através da plataforma da Amazon Crossing, qualquer pessoa pode indicar obras para serem traduzidas e, se aprovadas, posteriormente são encaminhadas para a rede deles de tradutores literários. Incrível, não?

Acredito que quanto mais narrativas tivermos, quanto mais as experiências de mundo forem compartilhadas, mais aptos estaremos para efetivamente agir.

A literatura é para — e sobre — todos

Painel com Kelly Luegenbiehl

História para todos. Essa foi a premissa que conduziu em muitos momentos a fala da VP Internacional da Netflix Originals, cujo trabalho é trazer conteúdos locais e dar a eles projeção global.

A Netflix invadiu as nossas casas. Ao mesmo tempo em que podem ser aliados muito importantes para a promoção de obras que conversam diretamente com o mercado editorial, ela também nos balança. No sentido que, por estarmos sempre competindo pelo tempo de nossos públicos, é preciso entender como transformar os aprendizados de uma das (se não a) maior plataforma de streaming em estratégias mais claras dentro de nossos escritórios.

Livros se transformam em filmes e séries. Filmes e séries se transformam em livros.

Gostei muito do que Kelly disse em determinado momento: “quando o leitor ou espectador conhece a sua história, ele precisa querer convidar os personagens para dentro da casa dele, pois a maneira como consumimos um bom livro ou uma boa série, é a mesma”. Ou seja, ficamos envolvidos, não conseguimos parar até chegar ao final e compartilhamos com todos os nossos amigos.

Outra coisa legal é que a fala de Kelly se baseou o tempo todo num grande respeito pela confiança que os assinantes depositam na empresa para que ela faça a melhor curadoria. Enquanto a Netflix se propõe a ser digna do investimento de seus assinantes, talvez enquanto editores nós assumamos por nossa conta e risco que temos esse papel de escolher histórias e o leitor, por sua vez, deve consumir de nós sem antes nos dedicarmos a efetivamente construir uma relação de confiança. É uma sentença meio pegadinha, e não sei se faz sentido para todos, mas me fez parar para pensar.

Quando questionada sobre como as pessoas estão se comunicando e definindo suas escolhas, a VP trouxe um argumento muito importante: autenticidade. As pessoas querem se relacionar com conteúdos que expressem autenticidade, algo que inclui invariavelmente o trato diversificado e dinâmico da linguagem.

Essa é uma das razões que justifica o investimento da Netflix Originals em obras em diversos idiomas, produções locais das regiões em que a empresa tem escritório. Eles partem do local e o apresentam no global. Então, em vez de eu ter um único produtor que impõe sua narrativa ao mundo (como Hollywood), tenho muitos produtores que conversam com o mundo. É por isso que as produções originais são disponibilizadas para o mundo todo no mesmo dia, no mesmo horário. Uma grande oportunidade de eliminar barreiras.

A literatura é um ato político

Literatura e Política na Ásia com os escritores Ho Anh Thai, Hon Lai-Chu e Chuah Guat Eng

Já que estamos falando sobre eliminar barreiras, empatia e ampliação do repertório de narrativas, entramos no debate político. Afinal, literatura é política.

Chuah Guat Eng, primeira romancista da Malásia a escrever em inglês, disse num determinado momento: “política é o motivo da minha escrita. É como encontro um pouco de compreensão para o que acontece ao meu redor.”

Os autores dessa mesa de muitas maneiras tiveram que enfrentar a repressão para terem suas obras publicadas. Chuah contou, por exemplo, como para driblar a censura teve de usar artifícios para falar de temas sensíveis de maneira implícita, o que dá ao seu texto muitos níveis de interpretação, a depender de quão atento a isso estará o seu leitor. (Experiência que se relaciona diretamente com a história das produções brasileiras durante a Ditadura)

“Escrever é honestidade , é ajudar as pessoas a se curarem, pois elas precisam ser ouvidas. Escrever é a possibilidade de criar conexão", disse Hon Lai-Chu, escritora nascida em Hong Kong.

Para os autores, na literatura também está a possibilidade de criar senso de nacionalidade, patriotismo e estimular o desenvolvimento econômico.

No meio do caos, lá estavam os brasileiros

Todas as conversas anteriores foram importantes e me geraram muitas reflexões. Mas nenhuma delas conseguiu ser mais forte do que meu último encontro do dia.

Alexandre Ribeiro, autor de Reservado, e Fred di Giacomo, autor de Desamparo, são brasileiros e estão morando na Alemanha. Eles foram até a recepção dos Jovens Talentos me cumprimentar, algo que por si só já mexeu muito comigo. Foi um gesto de muita sensibilidade e valorização dos nossos. Conversamos um pouco e eles me deram a honra de acompanhá-los para um happy hour com outras brasileiras também moradoras da Alemanha.

O papo foi longe. Conversamos sobre representatividade na produção literária brasileira contemporânea, sobre a coragem desses dois autores empreendedores, sobre resistência.

Falamos muito sobre a importância de entendermos a ocupação de nossos lugares de maneira política. Nós, enquanto periféricos, provenientes de uma cultura que não reconhece seu passado e os impactos duros que o mesmo deixa em nosso presente, carregamos longas jornadas que não se tratam apenas de nós, mas também de nossas famílias, nossos bairros e cidades.

Eles me falaram sobre como na Alemanha existe uma “Cultura da Briga”, ou seja, uma visão de que a garantia da liberdade de nossos pensamentos assegura também a liberdade para a contradição, o questionamento, o debate. Algo tão fundamental para a construção do pensamento crítico e do qual tanto temos fugido.

A conclusão desse encontro foi a reflexão sobre a importância de lutarmos pelo reconhecimento do valor das diferentes histórias, pois embora muitas vezes tidos como ficcionais, a experiência do autor transposta nas obras as transforma em alguma medida também em relatos autobiográficos. E quando temos história, temos tudo. Foi um encontro que me emocionou.

As mulheres incríveis às quais os dois autores me apresentaram estão muito envolvidas com a Associação Abà (gente em Tupi-Guarani), uma organização sem fins lucrativos que trabalha pelos Direitos Humanos e cujo objetivo é contribuir para a inclusão, o trabalho educacional, a compreensão internacional e a cooperação na Alemanha e na Europa, além de realizar e apoiar projetos sociais no Brasil.

Depois de todas essas conversas profundas e relevantes, pensando naquelas perguntas que tinha deixado em aberto no meu primeiro texto, talvez desse ponto você concorde comigo que há algumas respostas:

Como nos comunicamos melhor? Como assumimos um papel mais ativo no desenvolvimento de iniciativas inovadoras? Como aprendemos a gerir melhor o conhecimento interno de nossas organizações para que sejamos cada vez mais eficientes no relacionamento com nossas audiências?

Essas perguntas precisam mudar de tom, pois não é sobre as organizações, mas, sim, as pessoas que as constroem e aquelas que as consomem. Para mim, o retrato fica mais ou menos assim:

  • Nos comunicamos melhor quando aprendemos a ouvir e ler os contextos em que estamos inseridos, valorizando as marcas históricas, culturais e sociais de cada lugar e cada grupo com o qual cruzamos;
  • O nosso relacionamento com as audiências que buscamos se torna mais forte quando reflete autenticidade;
  • Seremos mais inovadores quanto mais plurais formos capazes de ser em nossas produções e nossos projetos;
  • O conhecimento será tão melhor absorvido quanto menos arquivado e mais compartilhado for. Compartilhar exige rituais, encontros e conversas que nem sempre são confortáveis, mas são muito importantes.

Termino então dizendo que foram muitas sacudidas internas. Sobre a responsabilidade que eu tenho com este espaço e todos os privilégios que carrego nele. Sobre a importância de ao mesmo tempo em que valorizo a minha trajetória, como ser ponte para que outras e diversas narrativas ocupem espaços antes tidos como inacessíveis. E, por fim, enxergar o potencial criativo e provocativo que há quando derrubamos barreiras e diminuímos distâncias.

Jovens Talentos do Mundo — Brasil, Holanda e Suíça
Talita Camargo, Maju Alves, Diego de Oxóssi, Raquel Menezes e eu

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